Craotchky 10/03/2024A dureza da mandíbula"Não mais havia em mim o que em mim traduzia o mundo."
Ao contrário dos outros dois livros da autora, não engajei imediatamente em A natureza da mordida; a leitura demorou um tanto a me capturar, a fazer com que eu não conseguisse não querer estar nela. O fato é que o início do livro pode soar meio estranho. Vamos recebendo pitadas do que mais pra frente se desdobrará perante nossos olhos então sedentos. Neste começo, as personagens se conhecem em um sebo e passam a conversar, cada uma contando esboços de consequências de coisas que lhes aconteceram em suas trajetórias pregressas.
Durante as conversas as protagonistas fazem alusões a eventos que, por intuição, nós leitores(as) sabemos que estão recheados de significação que só apreenderemos através da continuidade da narrativa. É nesse sentido que no decorrer do livro vamos lentamente desnudando as vidas de Biá, uma psicanalista aposentada, e Olívia, uma jovem jornalista, bem como outros personagens relevantes que orbitam estes dois sóis centrais. Portanto, o início da obra pode ser confuso, justamente por apenas delinear aquilo que só adiante será detalhado.
(Experimentei reler o começo do livro após o ter finalizado. Minhas percepções foram bem diferentes, pois agora, já sabendo da história toda, tudo passou a fazer mais sentido. Recomendo.)
O núcleo deste livro, assim como os outros dois da escritora, são os relacionamentos humanos em suas mais profundas complexidades. De forma mais específica, o tema central do livro é o abandono em diferentes formas, embora escorregue também para a omissão, o silêncio, a ausência, a fuga e, particularmente para mim, o quanto pretender julgar alguém é algo condenável pelo simples fato de que, aquele que julga jamais sabe e jamais saberá tudo que faz o agente agir de determinada maneira, ou se abster de agir, o que para Sartre também é ação.
"Não é preciso se lembrar para arrastar uma história vida afora."
O enredo vai se avolumando conforme avança, e com ele cresce a capacidade do livro de prender o(a) leitor(a). A história começa a ganhar contornos mais definidos ao passo que vai revelando mais e mais as vidas que por ela são contadas. E à medida que isso acontece, conseguimos aos poucos compreender as implicações e desdobramentos dos acontecimentos na vida de cada personagem. Aos poucos as dimensões emocional e reflexiva do livro se consolidam, agregando os últimos elementos que faltavam para cativar o(a) leitor(a) de vez e o envolver de maneira definitiva e irreversível. E foi assim, de repente, que a história me tragou, e então eu só queria estar ali; melhor, só me restava estar ali.
A natureza da mordida mantém a linguagem poética bela e bem escrita das demais produções da autora. No entanto se diferencia de Tudo é rio e Véspera enquanto um livro mais maduro e lúcido; arriscaria a dizer também que se trata de uma obra psicologicamente até mais profunda. Além disso, outra diferença é que aqui os personagens são bem menos impulsivos e mais racionais. Nesta obra Carla Madeira reduz sua rudez, equilibra sua voz poderosa, amortece um pouco seus golpes, limita suas erupções, contém melhor seus ímpetos de espanto, e mesmo assim, por três vezes, quando eu menos esperava, quando estava de guarda baixa, quando estava completamente distraído da possibilidade da mordida, Vupt: a mandíbula se fechou, rápida e certeira, dilacerando a tenra carne.
Afinal, um poeta me ensinou que, às vezes, o beijo é a véspera do escarro.